quinta-feira, 30 de julho de 2020

Por que o caso Thammy é uma batalha na luta contra o fascismo


Com Thammy Miranda e Babu Santana, Natura lança campanha para Dia ...

Por Alexandre Bortolini



O caso da Natura é exemplo perfeito de pinkwashing, leia-se limpar a reputação de uma empresa vigarista usando um marketing "comprometido" com causas sociais. O exemplo de hoje é a visibilidade de homens trans, mas isso ja foi feito com homens gayscis, com pessoas pretas, com ambientalismo, com educação e por ai vai. "Responsabilidade sócio-ambiental", lembra? Pra quem acha que a Natura é bacana porque gera renda pra mães que criam sozinhas suas crianças, lêdo engano. A Natura é pioneira em "uberização" e case de sucesso em precarização total do trabalho,  especialmente de mulheres(!), transformando de forma muito astuta suas vendedoras em "clientes". No melhor estilo "empreendedoras autônomas", sem carteira, sem proteção contra acidentes, sem absolutamente nenhum direito trabalhistas, essas mulheres compram por sua conta os produtos, assumindo todo o risco da venda e, nao raro, produzindo dívida. É a externalização total dos custos do trabalho. Some-se a isso a biopirataria sobre comunidades tradicionais, os danos ambientais e uma produção ultrarrobotizada. Esse é o capitalismo "verde", 2.0, ou qualquer outro nome que alguém do Partido Novo ou da Rede goste de usar.

No caso concreto de agora, talvez, só talvez, a Natura esteja mais interessada na polêmica que na causa. O que eu tô dizendo é o que conta no "cálculo" do dpto de marketing provavelmente é mais a polêmica e toda a publicidade (gratuita) gerada pela inclusão de uma pessoa T do que um "compromisso" com essa ou qualquer população. Isso não quer dizer q a comunidade trans é bobinha e está sendo usada e manipulada. O ativismo trans sabe bem como lidar e negociar esses usos, seus lucros e prejuizos. Em escala menor e cada qual a seu modo, vários outros setores, empresas, políticos, acadêmicos ou publicitários "usam" grupos socialmente marginalizados nas suas estratégias de marketing pessoal ou corporativo pra produzir lucro. 

O fato é que a campanha, usando os meios próprios do capitalismo BR, ajuda sim a reforçar o reconhecimento da identidade de pessoas trans, numa das sociedades mais transfóbicas do mundo. Não por acaso a propaganda atiçou uma fogueira de ódio que se espalha nas redes sociais. A reação veio do lado de cá e de repente nós nos vimos por dias capturados numa briga pra dizer quem pode ser pai no dia dos pais. E a Natura tá lucrando com isso. Mesmo, em espécie. Do jeito que as coisas andam não me surpreenderia amanhã descobrir q tem bots russos pagos pela Natura pra postar contra e a favor da campanha. Não seria novidade. Esse serviço já tá sendo utilizado por políticos há alguns anos.

Seja como for, é impossível pedir pras pessoas não se mobilizarem diante de um ataque direto e violento a um grupo já tão socialmente marginalizado como as pessoas trans, no argumento de que a Natura é uma empresa capitalista interessada no lucro e isso é tudo uma estratégia de marketing. O que está em jogo é a própria possibilidade de existência de muita gente. Que é homem. Que é pai. E que está vendo milhares de pessoas dizerem que eles não existem. Foda-se se a Natura é uma megacorporação extrativista, uma ong ou um partido revolucionário. Essas pessoas existem. E vão ser socialmente reconhecidas, nem que seja no grito, ou no cartão. A auto-identificação de gênero é um direito. Humano. E uma garantia de liberdade para todas as pessoas, trans ou não. É ela que garante aberta a rota de fuga desse cistema de gênero em que nós estamos cisgeneramente acomodados. Onde Deus é homem e só é pai quem tem pinto. Onde poder é coisa de macho. Onde as coisas são como são porque sempre foram assim. Em tempos de regimes autoritários crescendo, é central confrontar toda e qualquer empreitada que queira controlar nossas possibilidades de existência. Que se arvore a dizer o que nós somos baseado na "natureza" ou na bíblia. Que queira eliminar a dimensão social da realidade. 

Até hoje muita gente não entendeu que tudo isso é mais que uma luta "identitária". A política LGBT amplia os limites do afeto, promove o prazer contra a disciplina do corpo, disputando os significados e formas de uma instituição básica em nossa organização social, econômica e política que é a família. A política trans traz um senso radical de autonomia sobre o próprio corpo e a subjetividade. Reivindica a liberdade de trânsito em uma sociedade organizada em posições fixas protegidas por muros. O conceito de gênero propõe um exercício radical de desnaturalização da vida e o feminismo o confronto a todas as formas de autoritarismo masculino. Reduzir essas políticas a políticas de identidade ou "questões morais" é esvaziar seu potencial político radical. As políticas feministas e LGBT que se desenvolveram nas últimas décadas, embora em negociação permanente com normas de gênero cisheterosexistas, intensificaram noções de democracia, igualdade de direitos, equidade, diversidade, pensamento crítico, liberdade, autonomia, criatividade. As ofensivas reacionárias contra políticas feministas e LGBT, por outro lado, estimularam noções de distinção social, moralidade, hierarquia, normatividade, naturalização da ordem social.

Embora o "campo progressista" nem sempre reconheça, essa é sim uma batalha de quem quer um mundo em que a transformação social (inclusive de si e inclusive de classe) seja possível. Não a toa quem tá do outro lado são justo os grupos que tão hoje no poder e que se elegeram exaltando justamente esses preconceitos. E o seu projeto autoritário não será derrotado, não se enganem, enquanto nós não nos libertarmos da sua, essa sim, "ideologia de gênero", que trabalha todos os dias pra nos aprisionar num mundo comandado por machos violentos que acham que o pinto lhes faz rei.