sábado, 31 de março de 2012

Racismos miscigenados

Dizer que a cultura brasileira é fruto da miscigenação não garante que, por isso, ela seja etnicamente democrática. Mesmo numa cultura miscigenada, os elementos culturais que têm origem nos grupos étnicos subordinados vão ter menos valor ou vão estar carregados de estigmas e preconceitos. Mesmo que eu me olhe no espelho e não consiga dizer se sou branco ou negro, eu sei, com certeza, que desde criança me ensinaram que há menos valor no que há de negro em mim. Se o meu cabelo é crespo, ele é duro, é ruim. Se o meu nariz é largo, ele é feio. Se os meus lábios são grandes, eu sou beiçudo. Se os meus olhos não são azuis, eles são menos bonitos. Se os meus dentes são grandes, eu escondo o meu sorriso. 

Se nossa vivência religiosa é marcada pelo sincretismo, cada elemento têm um valor diferente nessa mistura. Muitas pessoas que frequentam giras de candomblé jamais imaginariam a possibilidade de batizar o seu filho ou sua filha num terreiro. E boa parte delas, se perguntadas, responderiam que são católicas. Algumas lideranças religiosas evangélicas vão demonizar toda e qualquer prática que remeta às religiões de origem africana - mesmo que muitas vezes utilizem referenciais bastante parecidos. Alguns espíritas, ainda que reconheçam muitas semelhanças entre suas crenças, podem se referir à umbanda como uma prática primitiva, atrasada ou menos evoluída.

De novo, o fato de misturarmos nossas religiões, nossas culturas, nossas músicas e mesmo nossos corpos não garante, por si só, uma equidade entre brancos e negros. Cada elemento religioso (a cruz ou o tridente do exú), cada marca corporal (o cabelo liso ou o crespo), cada som (do atabaque ou do violino) vai ter um valor diferente dentro dessa nossa nada democrática miscigenação.

terça-feira, 27 de março de 2012

Prêmio de consolação para Bich@s MaL TrataDAs



Já reparou como as bichas que são maltratadas, espancadas, esculhambadas, largadas, rejeitadas durante toda a novela, no final ganham um "premio de consolação"? Geralmente um bofe escultural - e apático - que aparece no último capítulo. No caso do Cro, metade da fortuna da mulher de quem ele era a bicha chaveirinho. Mas é isso que eles acham viado quer, não é? Bofes de plástico, luxo e dinheiro! Pra que respeito? ...

Carta a um amigo hetero.

Olha só. Nós somos diferentes.


Tudo bem. Já sei o que você vai dizer: mas nós somos todos diferentes. Ou então que nós temos um monte de coisas em comum, outras coisas em que somos bastante iguais. É claro. Mas eu não to aqui pra falar de todas as diferenças – nem das semelhanças. Tô falando dessa, essa aqui, essa agora. OK?

Portanto, nós somos diferentes. E quando digo somos, digo assim mesmo, no plural. Eu sou diferente de você, do mesmo jeito que você é diferente de mim. Não vá pensando aí que porque você tá hoje no topo dessa hierarquia social que eu sou O diferente, o diferente de VOCÊ. Porque eu não reconheço essa tua hegemonia, me rebelo contra essa tua norma e embora saiba que ela existe e o quanto ela é forte, trabalho todo dia contra ela. E não posso, nem quero, nem vou, reconhecê-la no discurso. Portanto, somos diferentes sim. Assim. No plural. Eu sou o seu outro. E você também é o outro de mim.

Você então vai começar a falar sobre o quanto nós somos parecidos, em tantas coisas. Bom, o negócio é o seguinte: Eu não quero ser igual a você. Não quero ser grosso, nem soar arrogante, mas vamos parar com esse monte de comparações. Então não venha com essa história de que nós amamos igual, nós nos relacionamos igual, nós sofremos igual. Porra nenhuma! Que é isso!

Nós não sofremos igual. Cada sofrimento é particular. E por mais que você já tenha sofrido com outros preconceitos, a discriminação não é algo que se acumule ou que se pontue. Cada um vai experimentar ela de um jeito. Por outro lado, eu também acho, pelo menos desconfio, que você também sofreu um bocado por conta das mesmas regras e normas que me fizeram viver tanta angústia. Mas nós vivemos lados diferentes dessa história. Não dá simplesmente pra dizer que é a mesma coisa.

Nós não nos relacionamos igual. Eu não sei se eu quero casar. Eu quero ter o direito de casar, o que é bem diferente. Mas também quero ter o direito de não casar! De querer viver junto, ou de ser solteiro a vida inteira, ou de ter uma relação por interesse, ou só por amor, ou só por sexo, a um, a dois, a três. Eu quero ter o direito de adotar um filho ou uma filha, ou de fazer um ou uma pelos meios que já existem. Mas também quero ter o direito de não querer ter filhos! De gastar todo o meu dinheiro comigo mesmo, numa vida cheia de luxúria e frivolidade!

Do mesmo jeito: Nós não amamos igual!  Não tem como! Cada um ama de um jeito. Para alguns amor é apego, pra outros carência, pra outros entrega, pra outros cobrança, pra outros liberdade, pra outros compromisso. Então como assim “nós amamos igual”? Quem disse que só tem um jeito de amar? Quem disse que esse teu jeito aí é o certo? Quem disse que eu quero amar pra vida toda? Ou só uma pessoa? Ou juntar amor, sexo e conta pra pagar?

Além disso, não é bem de amor que a gente tá falando. Esse quadro quem pintou foi você. Afinal, quando você fala de amor, não precisa falar daquelas partes, daqueles pequenos detalhes, meio desagradáveis, do tipo que não se fala quando a nossa avó tá na sala. Mas não adianta. Entenda uma coisa, meu bem: além de todas as coisinhas bunitinhas, nós estamos falando é de sexo! É, isso mesmo, de paus, picas, bundas, bocas, peitos, pelos, pés, dedos, sêmen, couro, cordas, tapas, dois, três, quatro, quantos couber! Estamos falando de chupar, dar, comer, bater, lamber, cheirar, fuder, gozar!

Quantos quartinhos escuros você já frequentou na vida? Quanta pegação já fez num banheiro da escola, do shopping, da rodoviária? Quantas sacanagens você já fez em becos escuros, praias, casas abandonadas? Saunas? E não vá achando que tudo isso vai sumir, lentamente desaparecer, a medida que eu possa simplesmente viver a vida do seu jeito. Não, gato. Tudo isso tem uma beleza própria, um gosto próprio. Tudo bem, é verdade, eu trepava no beco porque não podia namorar na pracinha. Mas quem disse que quando eu puder, de verdade, namorar na pracinha, eu vou dispensar o beco?

Olha só, meu querido: Eu dou a bunda. E gosto. É verdade, você também poderia dar. E poderia, sem dúvida, aprender a gostar. Como eu também poderia aprender a delícia de comer uma mulher. Nossa diferença é claramente construída. Uma diferença cultural mesmo. E aí? Quer tentar? Se você tentar eu tento, juro...

Ah, e não se esqueça: Eu dou pinta! Isso  mesmo! Desmunheco, falo fino, dou gritinho, ando rebolando, gemo, bato cabelo, faço carão, penero, dô close, faço a egípcia, faço a uó. Porque aqui, meu amor, quem tem medo de parecer com mulher é você. É você quem acha que tudo isso é coisa de mulher. E mesmo que eu discorde, e ache que esse teu pensamento binário de macho e fêmea é um bocado limitado, eu não tenho medo nenhum do feminino. Se isso te desconforta, te incomoda, é porque você ainda acha que ser mulher, ou parecer com uma, é algo vergonhoso, pejorativo, que diminui, que inferioriza. Pra mim não é. Quando você me xinga de mulherzinha - e como pode mulher ser um xingamento? - pra mim é elogio. Eu sou dessas, meu amor!

Talvez você não ache a minha linguagem apropriada. Mas é isso, falar é como dar o cú. É um ato político. Não posso abrir mão. Nossa língua é a mesma, mas os usos são diferentes. As palavras que você acha feias são as palavras que seus amigos inventaram pra falar mal de mim. Todas elas! Mas se eu fugir delas, é como se eu estivesse reconhecendo o medo, o medo do seu dedo, que aponta pra mim, e me culpa. Mas pra mostrar que eu já não tenho medo, eu uso essas mesmas palavras, que pra você são ofensas, e as transformo no meu nome, escrevo elas na minha carteira de identidade, faço delas a bandeira que eu vou levantar na rua.

Portanto, meu amor, aceita. Nós somos sim: viados, bichas, boiolas, monas, baitolas, pederastas, sodomitas. Nós damos o cú. Nós chupamos pau. E comemos também (não se esqueça!). E botamos pra chupar. E fazemos muitas outras coisas, que talvez você julgue inapropriadas, estranhas, nojentas, mas que eu acho uma delícia! Eu não sou limpinho. Não sou higiênico. Não sou essa pessoa boa, inteligente, amiga e maravilhosa. Sou legal e escroto como todo mundo - e como só eu sei ser, claro.

Entenda uma coisa, meu amigo: eu não quero ser igual a você. O que não quer dizer que eu quero ser diferente. Já passei dessa fase.  Simplesmente eu não preciso, isso mesmo, eu não preciso me sentir semelhante a você para me sentir bem comigo mesmo. Entendeu, darling? Porque nesse teu sorriso de bom moço, complacente e carinhoso quando diz, 'nós somos todos iguais' o que no fundo você quer dizer é que pela sua bondade e cabeça feita, você me deixa entrar no seu clube, você me deixa vestir a sua camisa, você me deixa dizer que eu sou seu amigo. Mas desculpa, amigo, eu não preciso ser seu amigo. Nós até podemos ser, sem dúvida, e descobrir um monte de coisas pra fazer e falar sobre. Mas eu não preciso da sua aceitação. Não preciso do seu afeto. Não preciso da sua condescendência. Se sermos iguais significa eu me tornar parecido com você, muito obrigado, desquenda, beijo, me liga.

Se você quer me reconhecer, me reconheça como igual. E como diferente. Nós não precisamos nos gostar. Nós não precisamos nos amar. Nós simplesmente precisamos aprender a conviver. Talvez nem sempre dê pra gente entrar num acordo. Talvez em alguns momentos a gente caia na porrada. Mas se for assim, que seja uma briga justa, e não um genocídio. Que seja uma porrada, e não 49 facadas. Que seja uma luta. E não um crime. Se as nossas diferenças se tornarem em algum ponto tão incompatíveis, que você saiba me reconhecer como adversário à altura, e eu idem. E vamos à disputa. Afinal, quem disse que democracia é consenso? Muito pelo contrário. Democracia é apenas um jeito um tanto mais justo da gente brigar. E além disso, minha raiz não me deixa pensar diferente, não é a harmonia que faz as coisas andarem. É justamente a discórdia! É o desequilíbrio que faz a gente aprender. É o conflito que move a própria História.

Mas pra você não me achar completamente antipático, vamo lá, te convido pra tomar uma cerveja. A gente senta, bate um papo, e quem sabe não aprende um com o outro, sobre um e sobre o outro. Só não vá beber demais, porque aí, sabe come que é... eu não me responsabilizo...