segunda-feira, 1 de junho de 2020

Um quadro do século XIX e uma propaganda do governo Bolsonaro, o que essas duas peças tem em comum?


Por: Alexandre Bortolini

Um quadro do século XIX e uma propaganda do governo Bolsonaro, o que essas duas peças tem em comum?

Um é uma pintura brasileira de 1895, feita por Modesto Brocos. O nome desse quadro é "A Redenção de Cam". Em uma passagem bíblica, Cam, filho de Noé, tem seus descendentes amaldicioados por seu pai a serem "servos dos servos". No século XVI, esse mito seria usado por europeus para justificar a escravização de indígenas e africanos, supostamente os descendentes de Cam. Mas porque esse mito da nome a um quadro que, aparentemente, não tem nada de bíblico? Observe bem.

O quadro mostra uma mulher negra de pele retinta. Ao lado, sua filha, que tem pele mais clara, um homem branco e, no colo, o filho dos dois: uma criança branca. Mãos erguidas para o céu, a avó agradece a deus pela graça do neto ter nascido branco e, portanto, livre da "maldição" que ser negro representava.

Se você reparar, há uma escala de cor, que vai da mulher mais velha de pele retinta e pés na terra ao homem branco que pisa um calçamento de pedras. A avó negra simboliza o "passado", negro. A criança branca simboliza o "futuro", branco. Representação semelhante pode ser encontrada em outras obras do mesmo período, como na literatura racista de Monteiro Lobato, em que os pretos velhos representam o passado folclórico e atrasado e as crianças brancas o futuro civilizado.

A ideia de que os europeus seriam um povo superior destinado a "civilizar" os "selvagens" das Américas e da África está na gênese dos processos de colonização que se iniciam com as invasões transatlânticas do século XVI. Essas ideias ganhariam força e uma nova roupagem no século XIX: a eugenia.

Em um mundo já atravessado por ideais de igualdade e laicidade trazidos pelas revoluções burguesas, era preciso encontrar formas de justificar os sistemas de dominação colonial racial que sustentavam a expansão do capitalismo. E é aí que entra a biologia. No século XIX, cientistas europeus usariam a teoria da evolução de Charles Darwin para sustentar que a seleção natural também operaria entre humanos e que isso teria gerado tipos biologicamente diferentes de pessoas, com capacidades também distintas. Essas diferentes raças humanas seriam organizadas em uma hierarquia que, não por acaso, tinha os europeus - que criaram a escala - no topo. Não demorou para que essas ideias ganhassem espaço no debate político e surgissem projetos que defendiam que os governos gerenciassem o caráter "racial" das suas populações como forma de "civilizar" e garantir o "progresso" da nação. Leia-se, projetos que propunham valorizar a branquitude e reduzir ou eliminar a participação de outros "componentes raciais" do povo.

O uso da eugenia para fundamentar uma hierarquia de raças com brancos no topo e como justificativa para a eliminação de grupos supostamente inferiores você já conhece. O Nazismo alemão do século XX é ainda hoje o seu maior símbolo. O que as histórias que se contam sobre o holocausto geralmente deixam de fora é o fato de que a eugenia não era exclusividade dos alemãs. Projetos de eliminação de "raças inferiores" estavam em curso em todo o mundo. Inclusive no Brasil.

Em meados do século XIX ficava cada vez mais evidente para as elites brasileiras que a escravidão estava com seus dias contados. A pressão política e militar dos ingleses ia inviabilizando o tráfico. O modo como a economia ia se organizando tornava a escravidão um modo de produção pouco interessante. A República ganhava espaço nas mentes e na política. Você pode imaginar a ansiedade das elites imperiais diante do fato de que, mais cedo ou mais tarde, aquelas milhões de pessoas negras escravizadas estariam livres. Os negros eram vistos como uma "ameaça" pelos brancos no poder. Uma ameaça que precisava ser "eliminada". Mas como eliminar aqueles que eram, em boa parte do país, a maioria da população?

A estratégia adotada pelas nossas elites você também já conhece. Do século XIX até o inicio do século XX, o governo do Império e depois da Primeira República dariam incentivos para produzir uma das maiores ondas migratórias da nossa história, trazendo para cá milhares de brancos europeus, que receberiam terra e trabalho para se fixarem aqui. Mas, diferente da versão idealizada de Terra Nostra e Esperanza, a imigração de italianos, alemãs e outros europeus para o Brasil tinha um objetivo bem perverso: aumentar o percentual de brancos no Brasil e diminuir o peso relativo dos negros.

A política de imigraçao europeia na virada do século 19 para o 20 é exatamente o nosso projeto eugenista. A peculiaridade do projeto eugenista brasileiro é que, diante de uma população majoritariamente negra, indígena e mestiça, parecia impossível recorrer a ideia de uma "pureza racial". A saída seria então o embranquecimento via miscigenação. Como os racialistas acreditavam numa suposta predominância biológica da raça branca, eles imaginavam que a miscigenação faria nascer, a cada geração, uma população cada vez mais branca. Com o tempo, o "componente negro" seria totalmente "eliminado" do povo brasileiro. É isso mesmo: o Estado brasileiro assumiu explicitamente o objetivo de eliminar a raça negra e construir uma nação o mais branca possível.

As ideias eugenistas estavam presentes também no pensamento dos militares brasileiros que proclamaram a República. A ideia de progresso estampada na bandeira do Brasil estava contaminada por um pensamento racista que mirava um futuro "civilizado" (leia-se, embranquecido) e o "melhoramento" do corpo pela disciplina.

Em 1911, o quadro A Redençao de Cam seria usado pelo médico João Baptista de Lacerda, um dos maiores defensores do projeto eugenista, como símbolo da tese que defendia o "branqueamento" da população brasileira por meio da mestiçagem. Como diz o nome do quadro, a "redenção" dos filhos de Cam - nesse caso, dos africanos, dos indígenas e dos seus descendentes que viviam no Brasil - seria "tornarem-se brancos". E o caminho para isso: a miscigenação. Não a miscigenação como esse mito do "encontro das raças" que a gente escuta desde sempre, mas a miscigenação como estratégia de embranquecimento, como forma de eliminar o componente negro do povo brasileiro. O símbolo desse futuro, no quadro, é justamente a criança branca, representação do sucesso do projeto eugenista brasileiro.

Algumas décadas depois, revelados os horrores da Segunda Guerra Mundial, as teses eugenistas perderam espaço e passaram a ser associadas ao genocídio provocado pelo nazismo. Seria esse o fim da eugenia? Infelizmente não. Ao longo do século XX, o racismo biológico se converteria em um racismo cultural. Se a cor da pele não podia ser mais usada explicitamente, o racismo migraria para a cultura. Alguns exemplos? O funk e a favela são ainda hoje associados ao crime e à incivilidade. Os modos de vida de povos indígenas seguem sendo estigmatizados como atrasados. Negros,  indígenas, árabes, sul-asiáticos, latinos e vários outros grupos étnicos não são mais descritos como biologicamente inferiores, mas suas culturas seguem sendo associadas ao atraso, à barbárie, à ignorância. Sua "redenção" seria (novamente) se civilizarem. E civilizar-se significa hoje aderir a um modelo de cultura, economia e sociedade ainda fundado no padrão branco-europeu, mas que tem agora como seu maior símbolo os Estados Unidos.

E é aí que chegamos à peça publicitária do governo federal, lançada em abril de 2020, como propaganda de um programa de geração de empregos. Na peça o que se vê são crianças (extremamente) brancas. Mãos erguidas, elas apontam para o slogan nacionalista do governo: Pátria Amada Brasil. A logo representa a bandeira brasileira como um sol nascendo no horizonte, sugerindo o início de uma nova era. A imagem foi bastante criticada por utilizar apenas crianças totalmente brancas para representar um país de maioria negra e indígena. Se o contraste com nossa população miscigenada é óbvio, o ponto que eu quero chamar atenção aqui é mais profundo. No nosso imaginário, as crianças representam o futuro, aquilo que virá, aquilo que desejamos para nós e para o mundo. Tal qual na tela do século XIX, a criança branca da propaganda do governo é o símbolo do futuro: um futuro branco. Mais do que uma representação "equivocada", essa peça deixa escapar (mais uma vez) a eugenia que está no DNA do Bolsonarismo.

Longe de ser a única evidência, essa peça se junta a uma série (imensa) de declarações, atos e até mesmo projetos de lei que deixam explícito o caráter racista desse governo. O presidente odeia quilombolas. O Ministro da Educação odeia a ideia de povos indígenas. O presidente da Fundação Palmares ataca Zumbi e defende a Princesa Isabel. Engraçado que ninguém reclama da colônia alemã na serra gaúcha. Separadas, essas declarações podem parecer a expressão de pessoas toscas. Mas infelizmente elas são apenas a parte mais caricata de um projeto bem real e que vem avançando dia a dia no nosso país.

Em um governo que tem como símbolo uma arma, a política de morte, por vírus ou por bala, tem alvo - e o alvo tem cor. O governo incentiva a violência policial que mata desproporcionalmente pessoas negras na favela e na periferia. Fomenta a invasão de terras e permite o assassinato de lideranças indígenas. A lógica da "sobrevivência do mais forte" e da eliminação dos "fracos" fica evidente na propaganda do ENEM, mas também dolorosamente explícita no total descaso do governo diante de uma pandemia que mata muito mais pobres, pretos e idosos. Terreiros são destruídos enquanto as grandes corporações neopentecostais crescem. O carnaval é atacado como degeneração. A diversidade cultural e étnica desaparece das propagandas oficiais. A valorização da "moral cristã" e da "cultura ocidental" é só um jeito atual de falar em embranquecimento.

Se há elementos no governo Bolsonaro que podem ser comparados ao fascismo e ao nazismo, mais do que a importação de modelos autoritários, o Bolsonarismo é expressão atual de um projeto bem brasileiro, que remonta à políticas eugenistas do Império e da Primeira República, mas que está aqui desde a invasão colonial. Um projeto em que pretos e indígenas são despidos da sua identidade étnica (a tal ponto de nem se veram mais como pretos e indígenas) e incluídos na parte de baixo de uma sociedade dominada por brancos e que mira o embranquecimento. Um projeto que precisa novamente ser confrontado, para que todos os povos, todas as culturas e todas as crianças tenham parte no futuro desse país chamado Brasil.


Este texto se baseia no trabalho de centenas de historiadores e cientistas sociais brasileires. Aqui vão algumas referências:

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Autêntica Editora, 2019.

LOTIERZO, Tatiana Helena Pinto. Contornos do (in) visível: A redenção de Cam, racismo e estética na pintura brasileira do último Oitocentos. 2013. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

DA SILVA, Mozart Linhares. Biopolítica, Narrativas Identitárias e Educação no Brasil.