quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Cadê as intelectuais trans nos seus estudos de gênero?


Por: ALEXANDRE BORTOLINI

No dia da visibilidade trans vamos pensar sobre o que significa uma política de visibilidade contra-cisnormativa na academia brasileira...

Há séculos pessoas transgridem as normas de corpo e comportamento e os lugares sociais que lhes são definidos por cistemas de gênero. Se algumas sociedades significavam essa transgressão de forma positiva, criando um espaço de existência e valor pra esses sujeitos, esse não é o caso das sociedades europeias que a mais de 500 anos vem empreendendo um projeto global de dominação, do qual somos parte e produto. Essa empreitada colonial - q não se iludam, segue em curso - impôs certos modos de significar o corpo e de construir as identidades que tem como um de seus fundamentos a cisgeneridade - a correspondência obrigatória e compulsória entre um corpo sexuado e uma identidade generificada, dentro de um sistema binário de representação que extrapola os sujeitos e acaba por organizar toda a vida. Essa "correspondência", que não tem nada de natural ou espontânea, é produzida através de várias práticas sociais, boa parte delas explicitamente violentas, outras aparentemente mais sutis, mas ambas com capacidade de eliminar a existência de sujeitos transgressores, tanto física, como simbolicamente.

A Ciência Moderna, esse fenômeno histórico localizado, essa forma específica de produzir conhecimento, absolutamente implicada nesse processo geopolítico de dominação, foi e é, não sejamos cínicas, um dos instrumentos mais potentes nesse genocídio. Sucessora, por vezes adversária, por vezes aliada, do Cristianismo histórico como modo dominante de significação do mundo, criou formas próprias de contribuir para a manutenção/atualização dos cistemas de gênero. Do laboratório de John Money até a resolução do Conselho Federal de Medicina, cientistas, do alto da "legitimidade" que sua posição - e não seu "mérito" - lhes outorga, criaram e seguem criando formas exógenas de definir quem quer que ultrapasse as fronteiras da cisgeneridade. Esses discursos impactam não só as noções gerais que cercam a cis e a transgeneridade como produzem efeitos recorrentemente violentos na mente e no corpo de pessoas transgêneras.

Mas não se engane, meu bem, quem acha que elas estão ali como massa passiva a se deixar definir pela teoria dos outros. Desde sempre essas violências físicas e simbólicas tiveram resistência. E hoje a gente vive um momento bastante avançado dessa briga, quando pessoas trans ocupam os espaços até então exclusivos à academia cisgênera e confrontam, de dentro, de fora e por todos os lados, as formas de colonização de gênero próprias da Ciência. O advento político do "lugar de fala", chorem o quanto quiserem chorar as acadêmycas de sempre, funcionou e segue funcionando como um belo chute nos peitos de quem insiste em modos colonizadores de produzir conhecimento. E para além do chorôrô mimado dos privilegiados que insiste em reduzir toda a potência desse conceito à sua dimensão silenciadora, que é, a despeito do seu uso mesquinho, uma dimensão importantíssima - "não, vcs não vão seguir falando essas merdas sobre nós" - o que essa ideia aponta é o quanto o lugar de onde se parte impacta decisivamente na qualidade do conhecimento que um sujeito é capaz de produzir. Ou alguém acha que a produção teórica de Michel, Judith ou Simone não foram impactadas - ou mesmo possibilitadas - pelas suas trajetórias de vida? Só mesmo a arrogância narcísica da branquitude burguesa pra achar que um pequeno grupo de privilegiades é capaz de produzir todo o conhecimento que precisamos pra entender a vida. Felizmente os muros da academia brasileira começaram a rachar nas últimas décadas. E por essas rachaduras as universidades vem sendo ocupadas por sujeitos que, até outro dia, não passavam de objeto de pesquisa. E isso inclui pessoas trans. Pessoas que não toleram mais serem colonizadas pelos discursos cis-científicos nem terem que se submeter à mediação de pesquisadoras (cis) lésbicas e gays para terem suas falas ouvidas.

Diante desse verdadeiro bonde de pessoas trans se tornando sujeito de pesquisa, o que cisgente como a gente pode fazer? Insistir em disputar o filé ou descer do salto e entender de vez que não há possibilidade de construirmos uma compreensão das relações de gênero sem a participação decisiva do que essas pessoas vem sendo capazes de produzir? E não tô falando só de Connell e Preciado - que o selo do mainstream da academia global já tornou aceitáveis. To falando de gente que tá aqui do lado, como Megg Rayara, Viviane Vergueiro, Amara Moira, Jaqueline Gomes de Jesus, Guilherme Almeida, Jota Mombaça (<3). Gente que tá fazendo pesquisa, de escrita poderosa e criativa, explicitando modos inovadores de pensar as relações de gênero no BR, mas que muitas vezes fica na sombra no jogo absolutamente assimétrico que define o regime de visibilidade no campo acadêmico brasileiro. Campo que às vezes mais parece um estacionamento, com uma galera sentada no banco das posições privilegiadas e que não mexe a bunda um centímetro pra não perder o lugar. Campo que ainda vive do ranço aristocrático e de práticas de favorecimento e de reprodução de posição enquanto por vezes repete uma retórica de "inclusão", "reconhecimento" e "diversidade".

Então galere, é 2020, e se você está aí produzindo pesquisa, engajado num mestrado, doutorado ou especialização, ou se você já tem um assento na cadeira bacana de professore-pesquisadore, já tá mais que na hora de entender que não dá mais. Não dá mais  pra seguir construindo nossos argumentos em cima apenas das mesmas "referências" de sempre. Não dá mais pra seguir ignorando todo esse mar de produção intelectual que jorra do transfeminismo. A insistência em subestimar essa produção talvez seja um bom indício da transfobia internalizada que tu carregas, do estereótipo da incapacidade e da objetificação que tu insistes em reproduzir. Se essa ranço ainda persiste, supere - ou será atropelade por elas.

Superar esse ranço vai lhe exigir uma atitude. Provável que a pessoa que lhe orienta não tenha as referências. Provável inclusive que seja reticente, resistente a incluir autoras como as que eu citei aqui na sua fundamentação teórico-metodológica. Mais ainda se elas não estiverem no pé de página, mas ocuparem posição central na construção da tua análise - ou da sua banca. Mas é isso, amiga, não se muda a gramática de um campo sem confronto, sem disconforto, sem afronte. No dia da visibilidade trans não adianta postar mensagem bacana, bandeira azul, rosa e branca, e seguir contribuindo para o epistemicídio de gênero que ainda persiste na academia brasileira. Não adianta querer os ganhos da imagem de desconstruída do rolê, sem se comprometer, de fato, com um engajamento parceiro, que implica custo e risco. E entenda, isso não é sobre solidariedade política, sobre ser bacaninha ou ninguém soltar a mão de ninguém. Isso é sobre a gente superar as limitações cognitivas que a cisgeneridade nos produz e nos tornar beneficiáries da imensa, rica e fuderosa produção intelectual dessa galera.

Aqui vão só alguns poucos links, pra dar uma mínima noção, do quão poderosa é a produção intelectual dessa galera. Boa leitura!

MOMBAÇA, Jota. Pode um cu mestiço falar. Medium, Natal, v. 6, 2015.

VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Salvador: UFBA, 2015.

DE OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes. Trejeitos e trajetos de gayzinhos afeminados, viadinhos e bichinhas pretas na educação!. Revista Periódicus, v. 1, n. 9, p. 161-191, 2018.

DE JESUS, Jaqueline Gomes. Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como genocídio. História Agora, São Paulo, v. 16, p. 101-123, 2014.

RODOVALHO, Amara Moira. CIS By Trans. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 1, p. 365-373, 2017.

ALMEIDA, Guilherme. 'Homens trans': novos matizes na aquarela das masculinidades?. Revista Estudos Feministas, v. 20, n. 2, p. 513-523, 2012.

Alexandre Bortolini é gay cis(ter) ativista e pesquisador, dedicado há uns tantos anos a políticas LGBTQ e hoje doutorany na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.